segunda-feira, 4 de julho de 2011

Miguel Couto - Central




Eram quatro horas da madrugada, e ele já estava de pé. Vestiu-se com uma presteza impressionante, porque os ponteiros do despertador não davam moleza. Engoliu o café numa só talagada. Fez o sinal da cruz, pegou a mochila contendo uma marmita amassada e um uniforme desbotado, e saiu em disparada. Precisava de fôlego, pois o percurso de sua casa até o ponto era longo. No dia anterior tinha caído um aguaceiro, a rua estava caótica, parecia um mangue de tanta lama.
 No tempo de eleição é tapinha no ombro, dizem que vão fazer e acontecer. É pura promessa. Depois de eleitos, desaparecem. – Pensava.
Embaixo da marquise que contava os minutos para desabar, outros trabalhadores já se encontravam aglomerados esperando o ônibus, que como de costume teimava em atrasar. Uníssonos reclamavam da passagem e da precariedade do serviço. O pobre homem conhecia bem aquela situação, trabalhava desde adolescente. De lá pra cá as coisas continuavam da mesma forma, sua gente sempre passando por problemas com os meios de transporte.
- O povo tem que protestar, sim. Mas tem que ser no portão da empresa! – Dizia uma moça.
- Tem que botar é fogo nessas porcarias! – Exclamava um rapaz.
Participar daquela Babel de opiniões não adiantaria de nada, queria chegar com a cabeça tranqüila no serviço. Estas manifestações populares somente aumentavam a sua indignação.
O ônibus despontou na curva, as pessoas começaram a ficar amotinadas, suas mentes teciam o seguinte desejo: Quem vai entrar primeiro Sou Eu! O veículo deu uma parada brusca. Uma desordem tomou conta do ambiente, todos queriam invadir o coletivo de uma só vez. A impossibilidade de passarem pela porta obrigava o surgimento de uma fila. Quando deu por si, o cidadão resignado se posicionava no último lugar. Os passageiros adentravam no coletivo com os humores alterados, soltando diversos palavrões.    
- Porra, Motor! O que houve? Essa merda demora tanto, e ainda vem lotada! – Praguejava um balzaquiano.
O motorista permanecia indiferente aquele clima hostil. Segurava firme o volante, seu olhar perdido varava o pára-brisa. O cobrador saiu em defesa da classe: O fiscal demorou pra liberar o carro. Calma pessoal! Abaixo o estresse!
Ele encostou o vale-transporte eletrônico na leitora, que sem a menor cerimônia consumiu os créditos. Comentava com seus botões sobre o absurdo de ter que pagar R$ 3,90. Sua consciência admitia que a distância entre o bairro Miguel Couto e a Central era uma quilometragem enorme, mas as autoridades podiam conceder uma atenção especial aos menos favorecidos tomando medidas mais rigorosas com o valor abusivo das passagens. 
A viagem prosseguiu. Paralelo a condução a deprimente realidade daqueles que desferem murros em ponta de faca para receber no final do mês uns míseros trocados. Na Dutra, indústrias e motéis compõem o cenário do confronto: Tecnologia x Sexo. Além das placas de sinalização e outdoors que despejavam seus conteúdos sobre o intenso fluxo de veículos.  A Avenida Brasil era um retrato fiel de sua convergente, contudo as impressões se revelavam distintas. Alguns ficavam apreensivos devido aos constantes engarrafamentos e acidentes de trânsito, em outros aflorava o medo de uma ”bala perdida” oriunda das guerras provocadas por favelas rivais que cercavam a via. Ele continuava introspectivo, torcendo para que o ônibus chegasse logo ao seu destino. Quanto mais que naquele dia a sorte o tinha agraciado - O Rápido veio na frente, porque se fosse o Parador certamente estaria no meio do caminho.
A única brabeza vinha na hora das paradas, eclodia um tremendo empurra-empurra para alguém conseguir descer. No resto a viagem seguia tranqüila, contemplada pelas criaturas irreverentes que preenchiam o corredor, e pelo pagode que rolava baixinho no rádio de um passageiro que infringia o aviso estampado no teto do veículo.
O desembarque no terminal rodoviário vinha envolto de tensão, um mar humano provindo de várias localidades do Rio de Janeiro inundava as plataformas. Fintou os obstáculos com incrível habilidade. Merecia ganhar uma página no livro dos recordes, na sua idade superar a gigantesca Presidente Vargas e um bom pedaço da Rio Branco em poucos minutos gerava espanto.     
Passou correndo pela portaria do edifício provocando o ar de negação dos seguranças. Como de habitual o elevador estava abarrotado de pessoas, meneou a cabeça para cumprimentar o ascensorista. Nenhuma palavra saiu de seus lábios, contudo o sujeito bonachão esparramado numa cadeira sabia bem o andar pra onde ele iria.
Marcou o cartão no horário cravado – 7.30 da manhã. Suou frio. Estava cansado de levar advertências do chefe. Numa das cabines do W.C. trocou de roupa. Tinha receio de pronunciar estes nomes estrangeiros. Com a vassoura nas mãos e uma lixeira iniciou seu ofício. A Diretoria exigia que o local tivesse uma limpeza impecável, sendo auxiliar de serviços gerais obedecia às ordens a risca.
Varrendo o Departamento Pessoal pode observar dois funcionários visitando o site da Previdência Social, e os comentários que realizavam sobre as mudanças da lei concernente as contribuições para o INSS. Então pensou: - Minha aposentadoria virou sonho. Ralava há 37 anos, porém a carteira tinha 30 anos de assinada. Com as alterações seu projeto havia caído por terra. Neste momento o principal refrigério era fuçar o baú das recordações, e resgatar as imagens da família. Um passado de contentamento. A esposa, seu braço direito por muitas décadas, e o filho com quem gastava os domingos em jogos no Maracanã. As imagens foram interrompidas de modo abrupto pelo fantasma que rondava sua mente. Um ódio descomunal renasceu das cinzas. Acreditava que a vida a escolheu para ser mártir, por isso aplicou essa dura pena – A mulher faleceu jogada às traças na emergência de um hospital público, vítima de complicações pulmonares.
Retornou a realidade. Deslizava o pano sobre a superfície do imenso vidro fume. Uma verdadeira corrida contra o tempo, à sala ampla o obrigava a ser mil e uma utilidades. Essas tarefas rotineiras deixavam seus nervos à flor da pele. Naquele recinto fechado dominava o falatório dos empregados e o barulho das máquinas – Um escritório que operava a todo vapor. Na hora do almoço opunhasse em se reunir com os demais, preferia um lugar ermo. A refeição não recebia nenhum tipo de aquecimento, mantinha uma ojeriza ao fogão coroado de modernidade. No convívio com o recipiente metálico, cada garfada traduzia sua luta pela sobrevivência.
Na segunda etapa foi dar uma arrumação no almoxarifado. Ali era um recanto de paz. Envolto por caixas e materiais de expediente, protegido dos homens. Aproveitou várias vezes o ensejo para tirar um cochilo, afinal ninguém é de ferro. Abriu a carteira, e acariciou a foto de seu menino. Assim o considerava mesmo seu rebento atingindo a maturidade. Oficial da marinha que servia no quartel de Corumbá, no Mato Grosso do Sul. O coração se enchia de satisfação quando recapitulava a trajetória deste jovem que perdia noites de sono estudando, que se preparava para os concursos num pré-vestibular comunitário. O resultado de tanto esforço foi recompensado. A conta telefônica acabava salgada, mas o filho respondia: - Pai não esquenta a cabeça. Eu envio o dinheiro pro senhor.
O sol se despedia no horizonte. Daquele arranha-céu tinha um completo panorama da cidade. Por segundos questionou a riqueza que dominava a selva de pedra: - Pelo alto tão bela, lá embaixo tão tétrica. Religiosamente guardou sua vestimenta e os utensílios de trabalho. Deixou para trás a lida, e com passos trôpegos tocou na avenida. Mais uma sexta-feira, os bares recebiam uma infinidade de clientes ávidos para afogar suas queixas num copo de cerveja, como também os prostíbulos da redondeza acendiam suas lâmpadas vermelhas para atrair os cidadãos ansiosos por prazer.
Mudou o itinerário. Chegando à Candelária, resolveu sentar no banco da praça. Diante da imponente igreja, ele classificava do seu jeito os ornamentos, tentando assim ressuscitar a fé da infância. Desejava que os pulmões inspirassem o oxigênio da renovação. O cotidiano mecanicista judiava de sua alma. Faltavam-lhe lágrimas para escorrer pelo rosto, as solicitudes da existência sugaram todas.            
Abandonou seu estado de meditação. Partiu de cabisbaixo. Achava impossível escapar das condições impostas pela civilização contemporânea. Esse tal futuro trazia consigo um emaranhado de inquietações. Reconhecia que na próxima semana enfrentaria novamente a Via-Crúcis.