quinta-feira, 7 de julho de 2011

Talião




Jogou um punhado de amendoim na boca, e mastigava com sofreguidão. Naquela roda de taxistas, ele era o mais machista. Dizia que mulher tinha que ser tratada no cabresto, nada deste negócio de direitos iguais. Ia além afirmando que na hora do asseio corporal a roupa deveria estar passada e dobrada dentro do banheiro. E que somente poderia realizar as refeições quando ele estivesse à mesa. Alguns concordavam, outros achavam um exagero. Mas todos eram unânimes – Florisberto tinha um repertório de frases que faria inveja a Gece Valadão. Se o assunto fosse futebol, o clima sempre fervia. E com seu jeito impetuoso, bradava: Tenho mais de cinqüenta anos de praia, e bato no peito – Meu mengão é o melhor time do planeta!
Escarneciam com declarações que seus defeitos eram tantos que preenchiam uma lista maior que a ponte Rio-Niterói. Porém, detinha uma virtude que superava a sarcástica lista – Ele não tremia diante do batente. Rodava com afinco pela madrugada no seu carro, o qual arrancou dele litros de suor até pagar a última parcela. Aquele retirante conhecia bem a rudeza da vida. Habitou na caatinga, onde colhia os cactos para alimentar a criação de cabritos de seu pai.    
Herdara a crença católica, não perdia uma missa de domingo. Trazia no cordão de prata seu santo protetor. Sabia de cor as preces que compunham a cartilha de um bom cristão. Já seus romances eram verdadeiras procissões pelo inferno. Durante muitos anos fora um solteirão convicto, e detestava ouvir o termo casamento. Ninguém conseguia conviver com um indivíduo que só agia de forma imperativa, e que não emanava nenhuma complacência com o sexo oposto. Não admitia seus erros, mantinha-se inflexível: Nasci assim, morro assim.
Mas as coisas mudaram... Atualmente afirmava que encontrou a sorte grande. Morava há seis meses com uma mulher jovial, que ao botar os pés na rua causava frenesi na população masculina do bairro. Os vizinhos boquiabertos tentavam compreender o que um ser de rara beleza tinha visto naquela criatura baixa, barriguda e de cabeça chata. Para os mais chegados respondia cheio de ironia que o segredo do seu sucesso era o “borogodó”, por isso as fêmeas baixavam a guarda.
A história não procedia deste modo, o passado daquela moça das melenas cacheadas acumulava um vasto currículo de perdição. Expulsa de casa após ter engravidado precocemente, fruto de uma relação incestuosa com seu irmão. Perambulou por muitos dias, caindo faminta na porta de um bordel, aonde a acolheram. Decidiu abortar. Conduziram-na a uma clínica, que a cafetina chamava de fazedora de anjos. Na época não atinava para o significado das coisas, seu olhar amedrontado corria pelas paredes úmidas e descascadas do lugar. A puseram em uma maca, e executaram os procedimentos. Fez programas nas principais termas do Rio de Janeiro, adquiriu ascensão meteórica no meio das Escort Girls. Enfrentou muitas situações de risco, como a do cliente que encostou um canivete no seu pescoço por ter recusado engolir seu sêmen. Florisberto a conheceu neste antro de luxúria, e utilizava seus serviços com freqüência. Nestes encontros o fogo da paixão foi nascendo em ambos. Depois de muitos pedidos abandonou a prática do lenocínio, prometendo fidelidade eterna ao seu companheiro.
Aquele homem embrutecido experimentava sensações inimagináveis por meio do sexo tórrido que realizavam diariamente. Dessa forma se tornava impossível negar determinados caprichos da amásia. Entre os colegas de profissão, mentia sem controle para sustentar a fama de durão. Se descobrissem sua nova realidade mergulharia numa desgraça descomunal. Como explicar que a pessoa com quem divide a mesma cama é uma ex-prostituta. Ela pretendia retornar aos estudos, mas desistiu diante de tantas objeções que lhe foram impostas.
Aproveitava a ida de Florisberto para a labuta, e dava suas escapulidas. Num entardecer foi à farmácia comprar um comprimido. A cefaléia martelava sua cabeça. Ao deixar a seção de analgésicos deparou-se com um rapaz de porte físico atlético – Era o segurança da loja. Trocaram olhares ardentes. Um vizinho que estava na fila do caixa registrou a cena. Ela pagou o medicamento, e esbanjando uma doce cadência pouco a pouco ganhou distância. De seus lábios escaparam um sorriso malicioso. Dali em diante visitaria mais vezes aquele local.
As más línguas iniciaram seu processo difamatório. Dona Almerinda, a moradora do sobrado, indagou a Florisberto se a considerável diferença de idade não provocava o temor de uma traição. Rangeu os dentes, e soltou: Só não falo uns palavrões, porque considero demais a senhora! Bateu o portão com extrema violência, e resmungando percorreu a calçada de ladrilho em direção a residência. Na semana seguinte, numa oficina mecânica, envolvidos pelo calor da discussão lançaram a farpa que ele devia ter atenção redobrada com quem estava convivendo. Saiu do estabelecimento espumando ódio, com o dedo em riste exclamava que mataria os participantes daquela fofoca.
As palavras foram germinando morosamente no coração. Ponderava dia e noite a respeito do espectro do adultério. Existiria algum fundamento nestas acusações? Será que haveria a possibilidade de uma recaída? Precisava averiguar os fatos na integra. Começou a seguir os passos daquela que alguns meses atrás se dedicava com exclusividade ao meretrício.
 Fez uma corrida para Tijuca. De lá partiu rumo ao seu endereço. Estacionou o veículo a cem metros de sua casa. Há dias ficava ali em plena vigilância, buscando um movimento estranho que confirmasse suas suspeitas. Nada colocava na berlinda a conduta de sua mulher, contudo a desconfiança ferroava a mente. Ligou o automóvel. Se embrenhou pelas avenidas da cidade para descarregar a tensão.
De manhã vistoriou cada cômodo da casa, procurando provas para incriminá-la. Ela dormia de baby-doll lilás. Sua aparência tranqüila contrastava com a fermentação do delírio que envolvia Florisberto. Foi para o banheiro tomar uma boa ducha. Preferiu emudecer por completo. O ambiente estava pesadíssimo. Gleice anteriormente já havia utilizado trajes eróticos para quebrar o gelo que estava sobre o relacionamento, mas nenhuma técnica rendia um resultado proveitoso.
No horário do almoço não proferiu uma só palavra. A mulher o desconhecia. Devorou a refeição como se estivesse há muitos dias sem tocar num alimento.  Gleice indagou: O que tá acontecendo? Florisberto a fuzilou com o olhar. Mas permaneceu calado.  Levantou e pegou a chave do carro. Gleice insistiu: Já vai trabalhar? Deu as costas para ela, e partiu. Nem um simples beijo. A mulher ficou perplexa. Por que tanta indiferença? - Ponderou. Recolheu os pratos e talheres. As horas iam esvaindo, enquanto debruçava nas atividades domésticas.
Noite fria. Um céu nublado dominava o Méier. Um rapaz alto e forte toca a campainha. Levemente ela descerra a cortina. Era Armindo – o segurança da drogaria. Correu eufórica para atendê-lo. Fazendo charme verbalizou: Seu louco! Que audácia é essa de aparecer no meu portão? Ele logo providenciou sua explicação: Me perdoe, por ter vindo aqui. Mas, estava morrendo de saudade! A mulher retrucou: Foi você que pediu para dar um tempo. Armindo revelou o motivo: Claro, linda! O gerente vivia torrando a minha paciência. Querendo milhares de informações sobre você. Até me ameaçou de mandar embora... Ela emendou: Tá bom?! Me engana que eu gosto!  Bem longe ele acompanhava o desenrolar do acontecimento. Enfim o flagrante tão almejado. Conseguiu o carro emprestado de seu amigo para ninguém perceber sua presença. Abriu o porta-luvas. De dentro dele tirou um revólver calibre 38. O tambor continha seis balas dum-dum. Por causa do elevado índice de assaltos à classe, comprou essa arma para se defender de um possível imprevisto. Pisou fundo no acelerador. Cruzava a alameda numa velocidade impressionante. Relâmpagos riscavam o infinito.
O casal ficou perplexo com a fúria do veículo que subia o meio-fio. Florisberto saltou de arma em punho. Encostando o cano no peito do jovem, esbravejava: Seu viado! Se prepara pra comer a raiz do capim! Armindo gélido disse: O senhor está cometendo um equívoco! A moça inteiramente estática tentou apaziguar os ânimos: Meu amor, posso te esclarecer tudo! Ele tomado de ira respondeu: Cala a boca vadia! Armindo suplicava por clemência. Porém sua atitude não modificou a decisão do homem atormentado pela idéia de infidelidade. Florisberto aplicou a sentença: Vou te mandar pro inferno seu miserável! O disparo produziu um tremendo rombo no tórax. O sangue encharcava a camisa, enquanto o corpo escorregava no muro. Num pranto convulsivo, ela repetia quase em sons indecifráveis: Eu sou fiel! Por favor, não me mate!  Transtornado proferiu as últimas frases: Gleice, como você pode ser tão safada? Realmente quem foi puta, jamais deixará de ser! Apertou o gatilho. O projétil atravessou a caixa craniana. Respingos vermelhos se propagaram pela calçada. Virou as costas para os dois entes que ainda esboçavam ínfimos sinais vitais. Entrou no veículo. A segunda marcha teve um engate preciso. O pneu cantou de modo estridente. Fugiu sem paradeiro definido. A chuva desceu copiosa. O precioso líquido das duas vítimas misturado à água escoava pelo bueiro.                
Uma hora após o desfecho do crime passional, a polícia cercava a área. Dona Almerinda tinha escutado os tiros, e telefonou para o batalhão. Guarda-chuvas travavam inúmeros duelos. A vizinhança queria uma maior aproximação do quadro deplorável dos cadáveres. O repórter de um jornal sensacionalista que colhia os fatos, anotava em seu bloco o título da manchete - Olho por olho, dente por dente.